Das artes plásticas ao cinema, Ana Cañas revela seu imaginário artístico

Foto: dilvulgação

Após um hiato Ana Cañas retorna à cena musical com um repertório que vai de Chico Buarque a Nirvana, passando por Caetano Veloso, Edith Piaf e Cazuza, além das próprias composições. A cantora lançou recentemente seu primeiro DVD, intitulado Coração Inevitável que tem direção e iluminação de Ney Matagrosso.

No último final de semana Ana Cañas se apresentou no Teatro do SESI, na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo. Com perfeita afinação, Ana abriu o show com Urubu Rei e arrancou da plateia palmas efusivas.

O público muito heterogêneo tentava entender e se encontrar dentro do espetáculo, dentro da entrega que Ana Cañas dedicava a cada um daquele teatro e foi assim durante as quase duas horas de show.

O destaque ficou por conta do Blues da Piedade além da interpretação que fez para Retrato em Branco e Preto, fazendo o público aplaudir em pé.

Tem sido realmente um retorno para Ana Cañas que passou por um período conturbado em sua carreira. Em entrevista realizada via email a artista comenta como foi para ela esse período em que optou pelo refugio, além de suas influências e a sua relação com a arte.

Confira abaixo a entrevista na íntegra:

Como foi o início da carreira para você? Quando lançou Amor e Caos você já havia tido contato com o Nando Reis ou foi a partir do álbum que tudo começou para você na cena musical?

Ana Cañas:  Olá. Bem, tudo começou no ano de 2003, quando tomei uma resolução pessoal, interior e espiritual que seguiria os passos da minha vida através da música. Cantei em muitos bares e hotéis, na verdade, em qualquer lugar em SP que contratasse uma menina que gostava de cantar as músicas de Billie Holiday e Ella Fitzgerald. Devo dizer que este caminho não foi nada fácil e talvez, por isso mesmo, extremamente gratificante. Cada ouvinte conquistado, cada canal atento era uma certeza metafísica de que eu realmente poderia fazer aquilo e lidar com aquelas emoções, aquelas letras. Lancei “Amor e Caos” somente em 2007 – um disco de composições próprias e ainda imaturas – na minha opinião pessoal e sincera. Apesar de gostar muito da sonoridade deste disco, continuo achando sua poética subjetiva muito superficial. O Nando eu conheci em 2008, ensaiando para um evento em São Paulo que acabou não acontecendo. Imediatamente, nos conectamos, nos tornamos amigos e aproximamos artisticamente.

Você teve apoio dos familiares? Como é a sua relação com eles?

Meu pai faleceu antes que lançasse o primeiro disco, mas chegou a ver algumas apresentações e gostava muito que eu cantasse. Se preocupava com as incertezas da profissão, mas me dava seu carinho e suporte emocional sempre que podia. Minha mãe, a mesma coisa. Não deve ser fácil para um pai ver sua filha estudar Artes Cênicas e tornar-se cantora num país como o Brasil, onde se apoia e valoriza tão pouco a arte e a cultura.

Você já comentou em algumas entrevistas que seu pai era um “figurão, uma pessoa muito louca”. Como era sua relação com ele?

Era maravilhosa. Nós não tínhamos muito diálogo, muita conversa. Mas eu sentia o seu amor no seu olhar, no seu silêncio. Ele era alcoólatra, e eu e meus irmãos lidamos com isso de forma dolorosa, mas com muito amor. Sabíamos que ele era uma pessoa especial, de um inteligência e sensibilidade extremas. Era pessoa incrível, mas que sofria de uma doença, de uma dependência física e psicológica de uma droga perigosa que é comercializada livremente neste país.

Em 2010 você passou com um período conturbado em sua carreira, período em que começou a consumir bebida alcoólica em grande quantidade. O fato de você se refugiar em um sítio no Rio de Janeiro tempos depois, como uma forma de se reencontrar, tem um elo com a história de vida do seu pai?

Com certeza. Eu não costumava beber até os meus 26, 27 anos. A partir dali, com a morte dele, comecei a ingerir bebida alcoólica na ânsia de entender, através da experiência vivida-vívida, o que era embriagar-se, perder a consciência. E isso acabou chegando aos palcos, infelizmente. Foi muito constrangedor e triste, mas ao mesmo tempo, quando olho pra trás, entendo que foi um momento de exorcizar a dor, a saudade e a tristeza de ter perdido meu pai da maneira que perdi. Foi o jeito que tive para lidar com aqueles sentimentos. Foi um grande aprendizado, embora tenha pagado um preço alto, pois fiquei bastante perdida em relação a minha música e a minha essência, aos meus valores. O público se distanciou, naturalmente. O isolamento teve a ver com isso, com esse momento de resgate, de paz, de procurar responder para mim mesma quem eu era e o que devia fazer dali pra frente. Foi um recomeço. Um momento de muita reflexão e mudanças profundas.

 Quando se refugiou em Vargem Grande levou alguém com você? Ou passou um tempo inteiramente sozinha?

Levei meus dois companheiros e fiéis escudeiros, grandes amigos e músicos, o Fábio Sá e o Fabá Jimenez, e também meu marido na época, que foi uma pessoa maravilhosa neste momento ao me apoiar integralmente, entender e cuidar deste silêncio que se fazia necessário. Sou muito grata à eles e ao amigo que nos recebeu de peito aberto em sua linda casa, o Aurélio Kauffmann.

Seu contato com o Ney Matogrosso ocorreu no período que estava no sítio?

Sim. Na verdade, foi o Ney que me deu um toque pessoalmente em relação a bebida. Foi ele que “puxou a minha orelha com carinho”.  Me disse que seria uma besteira muito grande “desprezar todo o meu talento por bebida ou coisa parecida”. Então fiquei pensando dias e dias, semanas e semanas, naquelas palavras. Afinal de contas, era um ídolo me dizendo aquilo. Foi chocante ouvir isso dele, mas foi a partir dali que comecei a me afastar desta atitude autodestrutiva. Foi muito importante aquele toque, naquele momento, dado daquela maneira. Ney é uma pessoa incrível. Não só o artista, mas o ser humano, a alma, o espírito dele. A integridade e a generosidade fazem com que ele seja quem é, na sua totalidade magistral.

O que o Ney Matogrosso representa para você? Tanto na obra artística da Ana Cañas, quanto no sentido pessoal?

Ele representa a entrega, o talento, a dedicação, a sabedoria, o amor, o respeito, a dignidade, a luta, a batalha, a intuição, a genialidade. Ele é um raio de luz e força neste planeta, definitivamente. Encarnou aqui porque quis, para compartilhar sua alma através de arte e do brilhante ofício que é interpretar canções e comover a todos com elas. Um exercício pleno de amor e consciência de que somos unidos por um único sentimento – ultimamente bastante esquecido – de união, de que somos a mesma alma-lama partida em milhões, mas conectadas a uma fonte suprema de amor incondicional. O Ney, pra mim, é isso. O reflexo puro dessa fonte existencial e maior.

O percalço que passou fez você atingir uma plenitude artística?

Talvez. Não sei se atingi realmente a “plenitude”, mas com certeza estou muito mais focada e concentrada no que é realmente importante para a minha vida e para a minha felicidade. E isso é simples. São coisas simples que me fazem feliz, que me dão alegria e prazer de viver a vida plenamente. Mas, ao mesmo tempo, é preciso entender o que são essas coisas e mantê-las num fluxo cotidiano, protegendo aquilo que lhe traz amor e paz. E isso se reflete no seu trabalho, na sua arte e nas pessoas a sua volta. Hoje me sinto plena, realmente. Estou feliz pelas conquistas e perspectivas que a música me dá diariamente.

O que é plenitude artística para você?

É encontrar a fonte. É conhecer-se, sem saber-se integralmente. Porque um certo mistério eterno faz parte do que somos. Não podemos desvendar por completo tudo. Mas conectar-se ao que nos emociona, ao que nos realiza e poder projetar no seu discurso e na sua poética as verdadeiras crenças e valores adquiridos e alcançados através de um vida vivida com amor, através de seus erros e acertos, para mim, é plenitude. É sabedoria adquirida, esforço e reflexão.

 Como é sua relação com o cinema? De que forma ele te impacta? 

O cinema junto com a música e a literatura, é uma paixão intensa e profunda na minha vida. Pasolini, Eisenstein, Bresson (ah! Pickpocket), Jean Vigo (ah! L’Atalante + Conduite), Dreyer (ah! Joanna D’arc), Truffaut (ah! Os Incompreendidos), De Sica, Kurosawa, Rossellini, Polanski, Coppola, Fellini, Bertolucci e tantos outros. São tantos-gênios-tantos que o nosso coração que supõe-se largo, fica pequeno. Mas confesso que, entre meus favoritos, estão Agnès Varda (minha vida se resume ao antes e depois de “Sem Teto, Sem Lei”), Godard (todo e qualquer filme dele), Buñuel (“A Idade do Ouro” é simplesmente colossal – e pensar que Dalí abandonou esse filme!).

Mas o grande amor da minha vida mesmo-mesmo é o Bergman. Ainda fico perplexa diante de seus textos. Falas. Diálogos. Logos. Phatos. Dellirium. Narrativa. Subtextos. Rubricas. Direcionamentos. Apontamentos. Sua fotografia. Sua perspectiva. Sua composição. Sua densidade. Como pôde um homem conhecer tão profundamente a alma feminina? Como pôde uma alma-homem ter desvendado e despedaçado o que somos assim, com tamanha intimidade? O abismo eterno, o cosmos flutuante e dilacerado da almagêmea-almafêmea? O dilacerar das nunvens e o ácido das rosas flutuantes. Somos mesmo todas ‘Ophélias’? Notável-imensa Liv Ullmann – conhecida como o “Stradivarius” do mister – é tão genial ao deixar-se capturar pelo olhar de um cineasta arrebatadoramente apaixonado. Desvenda sua alma e que agora é possuidor daquela beleza tão subjetiva e tão tátil.

Vale a pena viver não? É isso que esses filmes – e a mente-coração-espírito por trás destas obras geniais – me dizem.
Ah! o cinema. tão complexo, tão subjetivo. Tão mortal que nos faz renascer. Tão imortal que nos mata.

Por que na produção do álbum Volta você optou por uma ruptura com as gravações que havia feito anteriormente. De que forma se deu tal quebra?

Porque estava muito chato gravar tudo separadamente, não soava orgânico, nem natural, pra mim. Não dava mais tesão. Então comecei a gravar ao vivo, como se estivesse num show, tocando ao vivo. E isso era instigante. Eu sou uma “cantora-banda”. Tenho carreira solo, mas penso e sinto como se estivesse numa banda, tendo prazer de fazer a coisa rolar junto, com eles. E fazer isso era parte do “reconectar-se com a fonte” ou “buscar as respostas que me levavam à essência perdida”. Fez parte do processo, foi muito necessário e importante.

No show de Volta é possível notar uma entrega total sua semelhante à entrega de cantoras como Elis Regina no álbum Falso Brilhante e Gal Costa no disco Fatal – Gal a Todo Vapor. Como é trabalhar a emoção entre esses dois extremos? De Diabo a interpretação de Retrato em Branco e Preto?

É fascinante saber que através de uma canção, um intérprete pode dizer tudo que sente em relação à vida e à todas as coisas. Eu sinto isso cantando certas canções. E não vejo um outro caminho para alcançar o coração do público e das pessoas que não seja esse, o da entrega total. O desnudar-se, dar-se por completo. É um pacto, uma comunhão. Porque se você parar pra pensar, e imaginar que aquelas pessoas – o público – saíram de suas casas e compraram um ingresso apenas para te prestigiar e te ver cantar ao vivo, o mínimo que posso fazer é devolver em energia, amor e gratidão, sendo sincera e honesta de forma absoluta com minhas possíveis interpretações.

Descobriu-se como cantora após ter ouvido Ella Fitzgerald. Já gravou Edith Piaf, canta Retrato em Branco e Preto canção do Chico Buarque que ganhou grande destaque na voz de Elis. Já revelou sua grande admiração pela Gal Costa. Como é a sua relação com as vozes femininas? O que elas representam pra você?

Elas representam tudo isso que te falei na pergunta acima. Elas entenderam isso e fizeram disso a sua vida. Elas entregam, vivem a coisa toda de verdade. Não tem mentira ali, nem brincadeira. Não tem meio-termo. É tudo ou nada, o agora infinito. É coisa séria. É amor imenso, loucura e um equilibrar-se nessa loucura. Extrair dessa loucura a beleza, a alma, o sentido da vida. É bicho, é ser mãe, é ventre, buceta. É dionísio beijando apolo. É abismo eterno, o sorriso na face oculta do medo. O deixar-se, deixar-ser. Se permitir e se jogar nos braços do desconhecido de olhos vendados. É tudo e depois, o resto.

No seu show você trata bastante o tema “ser mulher”. Seja para dizer que a canção Traidor é para um ex-namorado, seja lendo um poema que escreveu: “me chama de louca, mas não vê eu faço amor com as estrelas, eu só quero o que me cabe (…)”. Como você enxerga atualmente a questão dos gêneros?

Os gêneros e suas diferenças e similaridades me fascinam, sempre me fascinaram. Tanto na sua integração, envolvimento, quanto nos seus paradoxos e contrassensos naturais. É terra. É o que é. É o que somos, como somos. A força bruta da raiz. Da natureza.  Ao mesmo tempo, somos um cada um. Somos únicos, totalmente únicos. Sete bilhões e únicos. Interagindo, sofrendo, amando, vivendo, desejando, trocando, construindo, destruindo. Enfim, sou a favor da liberdade total e plena do ser, da alma, do sexo, da sexualidade, do amor, do beijo, da ternura, do carinho. Das almas. Alma não tem cor, alma não tem sexo. Alma é essência. É o que vibra na fonte e nos conecta ao cosmos. Que cada um encontre o seu caminho e seja feliz, que se realize plenamente, do jeito que sente, do jeito que deseja! Acho muito careta, muito pobre e muito triste como o preconceito ainda vinga, ainda opera nos raciocínios, nos corações. Nascemos para nos realizarmos, sermos felizes. E nos aceitarmos como somos.

Como é o processo de escolha de repertório?

É um gesto de amor e visceralidade. É aquilo que te pega, que te puxa as entranhas, definitivamente. É a palavra que te move, te desloca da realidade banal. São os compositores que disseram o que ninguém disse, que ousaram e estiveram, muitas vezes, à frente do seu tempo quase sempre. O Ney me diz: o que você gostaria de cantar, além de suas músicas, no show? E eu respondi rapidamente, sem pestanejar: “Escândalo”, “Blues da Piedade” e “Retrato em Branco e Preto”.

Logo depois do lançamento de Amor e Caos, você disse em uma entrevista que naquele momento uma das suas maiores influências era Cat Power. Atualmente, após o lançamento do seu primeiro DVD Coração Inevitável quais músicos que têm dialogado contigo?

Nina Simone, Billie Holiday, Stones, Gal 70, John Coltrane, Rita Lee. Contemporâneas: Fiona Apple e Sky Ferreira.

O que você destaca do DVD Coração Inevitável e do álbum Volta?

A sinceridade e a busca impossível e eterna de tentar saber-se, conseguindo co-fundir-se.

Como é sua relação com os fãs?

Maravilhosa! Posso sentir o seu amor, o seu carinho, a sua fidelidade – no sentido do companheirismo, do estar junto e se fazer presente. Sem ele, nada vale, nada existe. É uma troca que dá sentido à tudo. O encontro com ele é o momento ápice, tudo se esclarece e os votos se renovam.

Como é Ana Cañas fora dos palcos, no dia a dia?

Louca, tranquila, desbocada, serena, pensante-fritada, triste, melancólica e a pessoa mais feliz da galáxia.

Um beijo.

Ana